Cem anos de solidão

Úrsula Iguarán e José Arcádio Buendía, os fundadores de Macondo. Ilustração de Carybé , 1971
Whatsapp
Facebook
Twitter
Instagram
Telegram

Por SOLENI BISCOUTO FRESSATO*

A fabulosa cidade de Macondo: uma alegoria da América Latina

Em 1989, numa entrevista sobre o lançamento de O general em seu labirinto, ao jornal Semana, Gabriel García Márquez revelou que seu compromisso com o povo colombiano e, de forma mais geral latino-americano, não era apenas estético, mas, fundamentalmente ético. Cansado das versões oficiais da história, ele cogitou a possibilidade de investir todo o dinheiro que iria receber com a venda do livro na criação de uma fundação, destinada aos historiadores jovens, ainda não contaminados pelos ideais dominantes, que escreveriam a “verdadeira” história da Colômbia, “en un solo tomo (…) y que se lea como una novela”.

O que García Márquez chama de “verdadeira” é a história de espoliação e exploração do povo latino-americano, que não figura nos manuais escolares, mas precisa ser resgatada, refletida e repetida, antes que seja apagada da memória e que desapareça numa rajada de pó e vento, como aconteceu com Macondo.

E é exatamente essa a proposta de Cem anos de solidão (1967), obra fundamental de García Márquez e já reconhecida como um clássico da literatura mundial, escrita como uma novela, num único fascículo, onde pulsa toda a história da Colômbia, e de forma mais ampla da América Latina. A pilhagem do pirata inglês Francis Drake a Riohacha, em 1596, que simboliza a exploração sofrida pela América Latina durante o período de colonização europeia. As divergências, apenas aparentes, entre liberais e conservadores, que caracteriza a situação política latino-americana, mas também são uma referência à Guerra de los Mil Días na Colômbia e o seu fim com a assinatura do Tratado da Neerlândia, em 1902. A instalação da United Fruit Company em vários países da América Latina, no início do século XX, e o Massacre das Bananeiras em 1928. A obra também nos permite a reflexão, não apenas sobre esses acontecimentos datados, mas, sobretudo sobre os processos sócio-históricos de construção, destruição e reconstrução de inúmeras cidades latino-americanas.

A linguagem fantástica utilizada pelo autor, longe de ser pura invenção apenas para iludir e tornar o mundo mais palatável, é uma forma de conhecer e compreender a realidade de forma crítica, em seus aspectos mais sofridos.

O autor e sua obra

Desde seu lançamento, Cem anos se revelou um fenômeno editorial, pois seus 8.000 exemplares iniciais foram vendidos rapidamente. Foi catalogada como uma das obras mais importantes da língua castelhana durante o IV Congreso Internacional de la Lengua Española (2007), incluída na lista das “100 Melhores Novelas em Espanhol do Século XX” do periódico espanhol El Mundo, dos “100 Livros do Século XX” do diário francês Le Monde e nos “100 Melhores Livros de Todos os Tempos” do Club de Libros da Noruega. Traduzida em mais de 40 línguas, com mais de 30 milhões de exemplares vendidos e totalmente elogiada pela crítica generalista e especializada, acabou por render, em 1982, o Prêmio Nobel de Literatura a Gabriel García Márquez.

Para os latino-americanos, Cem anos possui um peso ainda maior: é a reconquista e a compreensão da própria identidade. Nesse sentido, para Cobo Borda (1992), graças ao livro, finalmente, os latino-americanos agora sabem quem são e de onde veem. Assim como os pergaminhos de Melquíades desvendaram a identidade de Aureliano Babilônia, Cem anos desvenda a identidade latino-americana. Os habitantes de Macondo se salvaram graças a Melquíades, e os leitores podem também se salvar lendo Cem anos, afirma Zuluaga Osorio (2001). Para Gustavo Bell (2001), García Márquez ultrapassou os estereótipos negativos internacionais, para revelar a grandeza e riqueza cultural da Colômbia. Dessa forma, o autor colombiano marcou toda uma geração, influenciando profundamente a mentalidade de uma época.

Esse carisma não é apenas pelo talento literário de García Márquez, mas também por seu compromisso sócio-histórico. Além da proposta de criar uma fundação para escrever a “verdadeira” história da Colômbia, ele criou, em julho de 1994, a Fundación para um Nuevo Periodismo Latinoamericano, com sede em Cartagena, para a formação de bons e verdadeiros jornalistas, onde a ética seria o ingrediente principal.

As ideias lançadas em Cem anos percorrem toda a produção literária de García Márquez. Antes de 1967, sua obra era composta por uma constelação de discursos, que envolvem lembranças familiares e fantasias criativas, convergindo para a cristalização do mundo macondiano. Exemplo disso é o conto El regreso de Meme (1950) ou La casa de los Buendía (1950), ou ainda, Monólogo de Isabel viendo llover en Macondo (1955). Mas, seriam os contos publicados em “La Girafa”, entre 1950 e 1952, que revelariam alguns personagens e temas de sua obra mestra. Após Cem anos, os temas e as personagens permaneceram na produção de García Márquez, sobrevivendo ao apocalipse das últimas páginas. Como em O outono do patriarca (1975), Crônica de uma morte anunciada (1981), ou ainda, em O general em seu labirinto (1989).

O próprio autor admitiu a gestação dolorosa de Cem anos. Ele começou a escrever a obra quando tinha apenas 18 anos, mas na época, com pouca maturidade literária, foi incapaz de solucionar os problemas para a realização do projeto ambicioso que ele imaginava. Apenas 22 anos depois, García Márquez já contava com 40 anos, a obra foi publicada (Márquez, 1994).

Dados biográficos do autor surgem em toda a sua produção e esclarecem muitos aspectos de Cem anos. Os avós maternos, que o criaram até a idade de oito anos, foram fundamentais na construção de seu caráter e permeiam toda a sua produção: “doña Tranquilina era una mujer muy imaginativa y supersticiosa”, e seu avô, o coronel Nicolás Márquez, “la figura más importante de mi vida”. Por decisão dos pais, ele foi separado dos avós para estudar num pensionato “frio e triste” de Barranquila, depois de Zipaquirá, onde seu único consolo era a leitura na biblioteca (Márquez, 1994). Para Lepage e Tique (2008), devido a essas fortes influências de sua experiência familiar, García Márquez representa a si mesmo, em todas as suas obras, aspirando a utopia da infância eterna, numa versão muito interessante da síndrome de Peter Pan, ocorrendo uma confusão entre pessoa e personagem. Com Cem anos García Márquez recuperou o essencial da literatura em geral, a arte e o prazer de contar e, o mais significativo, recebeu o status de voz por excelência da América Latina.

Curiosamente, sua esposa Mercedes não é personificada em nenhuma de suas personagens. Os poucos momentos que surge em suas tramas, ela tem a mesma identidade: chama-se Mercedes e é farmacêutica, tanto em Cem anos, como a sigilosa noiva de Gabriel, amigo de Aureliano Babilônia, como nas duas vezes que intervém em Crônica de uma morte anunciada (Márquez, 1994).

Cem anos concretiza uma interrogação, praticamente obsessiva em toda a produção ficcional de García Márquez, sobre o tempo e a história. Suas personagens não conseguem viver o seu tempo, e acabam por viver num tempo cíclico de desgaste e de morte. É o tempo do mito, irracional e fabuloso e não o quadriculado dos calendários. A repetição de nomes (José Arcádio, Aureliano, Úrsula, Amaranta, Remédios), em todas as sete gerações da família Buendía, é um exemplo dessa permanente repetição, como se o mundo desse voltas sobre si mesmo.

García Márquez iniciou suas atividades de jornalista após os acontecimentos que levaram ao “Bogotazo”, em 1948. Após o assassinato do líder liberal Jorge Eliécer Gaitán, a população de Bogotá iniciou uma revolta espontânea e desordenada, com vários mortos, grande número de saques e incêndios. Logo, o movimento se espalharia por várias cidades importantes da Colômbia. O assassinato de Gaitán foi a gota que faltava para que o país entrasse no período conhecido como “La violencia”.

Na verdade, desde meados dos anos 1940, a ascensão de uma minoria conservadora ao poder presidencial desgostava grande parcela da população colombiana. Os presidentes Mariano Ospina Pérez (1946-1950), Laureano Gómez Castro (1950-1953) e Roberto Urdaneta Arbeláez (1951-1953) instauraram o terror e a violência, eliminando focos de resistência liberal. Somente após a ascensão do General Gustavo Rojas Pinilla, por meio de um golpe de estado, em 1953, os liberais conseguiram uma trégua e as guerrilhas diminuíram. As disputas entre conservadores e liberais, a violência, a repressão, as fraudes eleitorais dos governos conservadores e a ascensão dos militares ao poder são elementos políticos da história colombiana que surgem em Cem anos, mesmo que de forma fantástica.

Para Bensoussan (1995), Gabriel García Márquez transformou-se num mestre soberano e num verdadeiro Criador, com maiúscula e com majestade, de um mundo inscrito na história. Cem anos, como a Bíblia, possui quatro grandes momentos: êxodo dos fundadores, gênese, desenvolvimento e apocalipse de Macondo, narrados num tempo mágico, onde o passado aparece depois do presente e o futuro antes do passado.

Esses quatro grandes momentos também podem ser associados à imagem da vida e da história humana: infância, maturidade, velhice e morte, que surgem num universo mágico e sagrado. Nessa obra, continua Bensoussan (1995), García Márquez colocou tudo de sua experiência e de sua sensibilidade colombianas e, sobretudo, a realidade mais completa do universo latino-americano. Cem anos é uma espécie de síntese de toda a produção e da imaginação fértil e em desordem de García Márquez. É uma obra que revela a totalidade do espírito pensante, sonhador e escritor de seu autor.

O realismo fantástico de Cem anos de solidão

Primos que se apaixonam e são perturbados pela maldição de terem filhos com rabo de porco. Uma mulher forte e determinada que viveu mais de cem anos tentando impedir relações entre primos, para evitar a maldição. Uma jovem bela e perturbadora e sem compromisso com os assuntos terrenos que sobe aos céus. Outra jovem busca superar seus medos e desejos comendo terra e cal das paredes. Um homem empreendedor, fascinado pelo conhecimento, pelas experiências químicas e pelas invenções, que enlouquece e é amarrado num castanheiro.

Um coronel que sobreviveu a quatorze atentados, setenta e três emboscadas, um pelotão de fuzilamento e uma tentativa de suicídio, teve dezessete filhos com dezessete mulheres diferentes, todos assassinados. Seu irmão deu a volta ao mundo sessenta e cinco vezes em uma dezena de anos. Outra jovem conversou com a própria morte e desde então costurou sua própria mortalha, porque sabia exatamente o dia e a hora em que iria morrer. Todos são habitantes de Macondo, cidade que chorou flores amarelas pela morte de seu fundador e onde borboletas da mesma cor acompanhavam um homem apaixonado. Todos são personagens do realismo fantástico de Gabriel García Márquez em Cem anos de solidão.

O realismo fantástico é uma escola literária típica da América espanhola que surgiu no início do século XX. Mas, seria nos anos 1950 e 1960 que a expressão tomaria maior fôlego com as obras de García Márquez. Já em 1949, o cubano Alejo Carpentier, em O reino deste mundo (1985), se considerou adepto do realismo mágico. Realismo fantástico e realismo mágico passaram, assim, a serem termos próximos e similares, mas não sinônimos, guardando suas especificidades. Porém, ambos surgiram do confronto entre a cultura da tecnologia e a cultura da superstição, típico da América Latina de meados do século XX. Surgiram também como forma de reação, através da palavra, contra os regimes ditatoriais desse período. Nas obras do realismo fantástico, o irreal ou o estranho surgem como elementos comuns e cotidianos, espaço privilegiado para melhor expressar as emoções e os pensamentos frente à realidade do mundo.

A linguagem de García Márquez é, no mínimo, envolvente. Seu realismo fantástico encanta e conduz o leitor pelos meandros da alma humana, não apenas dos Buendía, mas de todos nós. Com essa obra, García Márquez repudiou a mentalidade bogotaniana, que outorgava à capital da Colômbia o título de “Atenas sul-americana”. Contrariamente ao academicismo vigente, García Márquez optou por revelar as mazelas e os conflitos de um povo oprimido pela sucessão de presidentes autoritários e tirânicos. Optou por revelar a cultura popular de um povo nascido da miscigenação, valorizando a cultura litorânea do Caribe e da Afro-América Latina.

Mas, a opção pelo realismo fantástico não é apenas política em García Márquez, é também afetiva. Sua avó, Tranquilina Iguarán Cotes (sobrenomes de duas mulheres fortes em Cem anos), que contribuiu de forma decisiva para a construção do seu caráter e de sua personalidade, tinha uma habilidade excepcional de tratar os eventos extraordinários como fatos naturais, de contar os eventos mais fantásticos e improváveis, como se fossem verdades irrefutáveis. Sua casa era plena de histórias de fantasmas, de premonições, de presságios e de profecias. Ao ler Franz Kafka, García Márquez encontrou o mesmo espírito. O autor contava as coisas da mesma maneira que sua avó, só que em alemão. Com Kafka, García Márquez percebeu que havia outras possibilidades de narrativa literária, para além das racionalistas e acadêmicas, que ele havia aprendido nos manuais. Para ele foi como “despojarse de un cinturón de castidade” (Márquez, 1994, p. 40).

É praticamente impossível ler Cem anos apenas uma vez. Depois de conhecer toda a trajetória de sete gerações da família Buendía, seus encontros e desencontros, é preciso voltar ao início, para, pelo menos, tentar decifrar e melhor compreender os meandros da árvore genealógica dessa complexa e sedutora família, que se confunde entre Josés Arcádios e Aurelianos.

Os cem anos de solidão não são apenas uma referência aos pergaminhos escritos pelo cigano Melquíades e somente decifrados pelo penúltimo dos Buendía, mas, acompanha todas as gerações dessa família marcada pela sina, pelo carma e pela hereditariedade da fatalidade, semeada entre a aventura, a impulsividade e a tragédia dos Josés Arcádios e a introspecção e a lucidez dos Aurelianos. Todos da família Buendía são solitários e incompreendidos. Utilizando a solidão como um refúgio, possuem fantasias e desejos secretos que não conseguem expor, nem satisfazer. E a solidão não é apenas deles, pertence também aos seus agregados. Pilar Ternera, Rebeca, Santa Sofia de la Piedad, Fernanda del Carpio, Petra Cotes, Maurício Babilônia, todos marcados pela solidão.

Sem dúvida, o tema da solidão é um fio condutor em Cem anos, mas não o único. A memória, com suas lembranças e os esquecimentos, arbitrariamente ou não, está presente em toda a narrativa e acompanha todas as personagens. José Arcádio passaria para todos os descendentes, de forma genética, a lembrança de Melquíades. Seu irmão mais novo, o coronel Aureliano Buendía, lembraria em frente ao pelotão de fuzilamento, o dia que havia conhecido o gelo. Sua esposa, Remédios, seria lembrada, por todos os Buendías, como a bisavó-criança que jamais completou 15 anos. Os gêmeos José Arcádio Segundo e Aureliano Segundo trocariam de identidade tantas vezes, que se esqueceriam de quem eram realmente.

A primeira geração dos Buendía já havia enfrentado a peste da insônia e sua evolução para o esquecimento: primeiro das lembranças da infância, depois o nome e a noção das coisas, até o esquecimento da própria identidade e da consciência do ser, tornando pessoas em “idiotas sem passado”. Tentando lutar contra o desgaste da memória, o patriarca José Arcádio Buendía colocou placas em todos os lugares para lembrar o nome das coisas e sua utilidade. Não fosse Melquíades e seu elixir de recuperação da memória, os habitantes de Macondo teriam se perdido em suas próprias lembranças, que não passariam de esquecimentos.

A discussão sobre a memória assume um contorno praticamente científico no capítulo em que é narrado o massacre na estação de trem. É o momento em que García Márquez, mesmo que com certa dose de ficção e exagero, elementos próprios de sua narrativa, nos fornece elementos de como pensar não apenas a característica fundamental da memória (o lembrar e o esquecer), mas, sobretudo, como a memória pode ser construída, modificada, deturpada, culminando com a construção de outra história, a oficial, de acordo com os desejos da classe dominante. É o capítulo mais impactante da obra e que será melhor analisado adiante.

Macondo – da fundação à destruição

A cidade de Macondo pode ser uma referência à Aracataca (Colômbia), cidade em que García Márquez nasceu e viveu parte de sua infância. Próximo à Aracataca existia um bananal com nome de Macondo, que, em língua Bantu, significa banana. Mas, por estar às margens de um rio, Macondo também pode ser uma referência à Barranquilla, cidade caribenha em que García Márquez viveu a juventude e onde fez os primeiros anos do curso secundário.

Macondo é, sobretudo, uma cidade inventada, mas com fortes vínculos históricos e sociais, sem lugar e tempo definidos, o que a torna possível para qualquer lugar, em qualquer tempo. É uma cidade como tantas espalhadas pelo mundo, que iniciou como um pequeno povoado, graças à persistência e vontade de seus fundadores, cresceu e se desenvolveu, conheceu o progresso e a prosperidade, a opressão e a tirania, para, logo em seguida, viver períodos de barbárie, até ser esquecida e desaparecer numa rajada de pó e vento.

A origem da cidade está numa maldição e numa profunda dor de consciência de seus fundadores. José Arcádio Buendía e Úrsula Iguarán eram primos entre si e, por isso, carregavam a culpa de um assassinato. Anteriormente, uma tia de Úrsula havia se casado com um tio de José Arcádio e tiveram um filho com rabo de porco, mais próximo de uma iguana do que de um ser humano. O sobrenome de Úrsula tem, assim, um duplo significado: é o sobrenome da avó de García Márquez e uma derivação de iguana.

As relações consanguíneas são uma constante em Cem anos, uma maldição para os Buendía e o que determinará o fim da família. Além de José Arcádio e Úrsula, Rebeca e José Arcádio (filho dos fundadores), primos em terceiro grau, não resistem a paixão e se casam, mas não chegam a ter filhos. Aureliano José e Amaranta, sobrinho e tia, vivem uma tórrida paixão, jamais consumada fisicamente. José Arcádio (5ª geração da família), morre lembrando dos carinhos que a tia-bisavó Amaranta lhe fazia durante os banhos. A relação consanguínea se concretiza apenas com Aureliano Babilonia e Amaranta Úrsula (sobrinho e tia), que terão um filho com rabo de porco. A maldição que deu origem à Macondo também determina o fim da família Buendía e da própria cidade, numa história circular.

Com medo de parir iguanas, Úrsula não queria consumar o casamento, até que a sabedoria popular farejou que algo tinha de errado com o jovem casal, que ainda não tinha filhos. Prudencio Aguilar, depois de perder uma briga de galos para José Arcádio, gritou para todos da cidade de Riohacha ouvirem, que Úrsula permanecia virgem, mesmo após quase dois anos de casada. Num rompante de fúria, José Arcádio o matou. A partir de então, o casal passou a ser assombrado pela alma de Prudencio. Resolveram fugir de Riohacha, na tentativa de esquecer o passado e fundar uma nova cidade, longe de tudo e de todos, onde tudo deveria ser criado, como nos primeiros dias do mundo.

Úrsula e José Arcádio foram acompanhados por mais 20 casais, viajando sentido o Ocidente, em busca do mar. Depois de dois anos de uma penosa travessia na serra, doentes e cansados, acamparam próximo à um rio, onde fundaram uma aldeia. José Arcádio, o líder, era então um jovem patriarca com caráter empreendedor. Foi ele quem traçou as ruas para que todos, de forma igualitária, tivessem as mesmas facilidades e os mesmos problemas. Rapidamente, Macondo se transformou na aldeia mais laboriosa e organizada, “onde ninguém tinha mais de 30 anos e onde ninguém ainda havia morrido” (Márquez, 1977, p. 15).

Longe de tudo, sem correio, telégrafo ou estação de trem, Macondo teria permanecido isolada não fosse o contato com os ciganos, dentre eles Melquíades, que traziam novos inventos, mas, principalmente, histórias de outros mundos e informações de outras localidades, que enchiam aquelas almas isoladas de sonhos e perspectivas.

Apesar de ser José Arcádio o aventureiro da família, foi Úrsula quem abriu as portas da cidade para novos habitantes, que trouxeram um novo impulso para os antigos moradores. Macondo deixou de ser uma pequena aldeia, transformando-se num povoado ativo, com lojas e oficinas de artesanato. A cidade passou a integrar a rota de comércio dos árabes e de parada de forasteiros, permitindo à população o acesso aos mais variados tipos de mercadorias. Mesmo com o crescimento do povoado, José Arcádio manteve sua posição de patriarca, tornando a traçar a posição das ruas e casas em benefício de todos.

Porém, trata-se de um pseudopatriarcado. Apesar de ter sido a força de José Arcádio que conduziu aquelas pessoas famintas pelos labirintos da serra, foi a força de Úrsula Iguarán que definiu os rumos do povoado e salvou a família, por mais de um século, da destruição, pois possuía a memória da história familiar. Ela era ativa, miúda, severa, determinada e destemida. Ainda jovem, uniu as fundadoras de Macondo contra as veleidades de seus maridos, obrigando-os a ficarem na aldeia que tinham fundado, indo contra os sonhos febris do marido pela conquista de novos lugares. Foi ela quem, durante a guerra, tirou do poder seu neto, Arcádio, por governar sob a base do terror, e passou a comandar a cidade. Foi ela quem assegurou a sobrevivência da estirpe por impedir os relacionamentos entre primos e, por consequência, o nascimento de filhos com rabo de porco.

Somente após sua morte, essa profecia se cumpre. Ninguém jamais percebeu que estava cega, devido à catarata. Durante décadas ela se recusou a envelhecer e morreu com mais de cem anos, mesmo assim, manteve-se lúcida, dinâmica e íntegra até o fim. Em contraposição ao patriarca, que morreu ainda jovem e teve que ser amarrado num castanheiro, devido aos surtos de loucura.

Nesse sentido, é pertinente citar que a origem da sedentarização humana e, por consequência, o surgimento das cidades, estão associados à atuação das mulheres. Eram elas, nas sociedades nômades, as responsáveis pela coleta de frutos, aprendendo, com maior facilidade que os homens, os ciclos da natureza e, mais tarde, desenvolvendo o plantio e a colheita. Também eram elas que sentiam a necessidade de permanecerem longo tempo num mesmo lugar, durante a gestação e os primeiros meses de vida dos filhos.

Macondo era um povoado pacífico, onde as armas eram proibidas, não havendo a necessidade de um delegado, por isso não aceitaram a autoridade de Apolinar Moscote. Também não aceitaram a autoridade do padre Nicanor Reyna. Tinham ficado anos “arranjando os negócios da alma diretamente com Deus” (Márquez, 1977, p.83), sem batizar os filhos, nem santificar os feriados, e sem a necessidade de nenhum intermediário. Era na verdade um povoado pagão. Na casa dos Buendía, somente após a chegada da católica fervorosa Fernanda del Carpio, esposa de Aureliano II, quarta geração da família, é que o ramo de babosa e o pão, símbolos de fartura, pendurados no marco da fundação da cidade, foram trocados por um nicho do Coração de Jesus.

A cidade viveu dias de pânico e sobressaltos com a guerra entre liberais e conservadores. Macondo era uma cidade sem paixões políticas, de um povo pacato, mas que não aprovava nem a violência, muito menos as arbitrariedades. Por isso, ao perceberem que os conservadores manipulavam as eleições e, sobretudo, os fatos, declararam guerra. Todos os 21 filhos dos fundadores estavam implicados na conspiração liberal, sem saber exatamente o que isso significava. Até mesmo Aureliano Buendía, que só queria fazer sossegadamente os peixinhos de ouro em sua oficina, tornou-se coronel do exército revolucionário. Não por ser adepto das causas liberais, mas por não admitir que violentas atrocidades contra a população fossem cometidas pelos conservadores.

A guerra durou décadas. No final, conservadores e liberais já não possuíam desejos divergentes. Os liberais ricos proprietários de terras entravam em acordo com os conservadores ricos proprietários de terras para impedirem a revisão dos títulos de propriedade. Só mesmo o coronel Aureliano Buendía e seu fiel amigo Gerineldo Marquez, únicos sobreviventes dos 21 intrépidos jovens descendentes dos fundadores, continuavam acreditando em seus ideais libertários e não faziam a guerra apenas pelo poder. O coronel Buendía lutava pela vitória definitiva contra a corrupção dos militares e as ambições dos políticos de ambos os partidos. O que o animava era a possibilidade da unificação das forças federalistas, com o intuito de exterminar os regimes conservadores de toda a América.

Nesse sentido, o personagem do coronel Aureliano Buendía pode ter sido inspirado em Ernesto Che Guevara (1928-1967), guerrilheiro que García Marquéz admirava e a quem não poupava elogios. Assim como Che Guevara, Aureliano lutava contra a opressão e a liberdade dos povos, acreditando na possibilidade de uma união entre todos os países da América Latina. Após uma viagem de motocicleta, com o amigo Alberto Granado, em 1951, decisiva para a sua formação política, Guevara percebeu que não apenas a opressão, mas sobretudo a miséria e a doença, eram realidades partilhadas por todos os países da América Latina, situação que deveria ser combatida e mudada com a união de todos.

Era um sentimento de identidade latino-americana que crescia em Guevara, e não apenas argentina. Além das proximidades de ideais, também existe a questão temporal. Cem anos foi escrito entre 1965 e 1966 e lançado em maio de 1967, ou seja, antes da morte de Che Guevara. Nesse período, ele estava envolvido, na Bolívia, com guerrilhas que almejavam a unificação da América Latina, proposta do imaginário coronel Aureliano Buendía.

Mesmo tendo perdido a guerra, já velho e cansado, o coronel ainda causava pânico entre os conservadores, revelando que as ideias liberais não estavam subjugadas. Durante um carnaval, décadas depois da guerra já terminada, alguém gritou, inocentemente, no meio da festa: “Viva o Partido Liberal! Viva o Coronel Aureliano Buendía!” (Márquez, 1977, p. 195), a alegria se transformou em pânico. O governo agiu drasticamente com tiros de fuzilaria, que deixaram mortos e feridos na praça.

Tempos depois, após nova arbitrariedade dos poderosos (que assassinaram uma criança e seu avô, porque o menino, sem querer, derrubou refresco no uniforme de um cabo de polícia), o próprio coronel avisou: “um dia destes, vou armar os meus rapazes para acabar com estes ianques de merda!” (Márquez, 1977, p. 230), referindo-se aos seus dezessete filhos, com dezessete mulheres diferentes, todos com o nome de Aurelino e o sobrenome da mãe. A atuação do governo foi fulminante, todos os filhos do coronel, que moravam em localidades variadas, foram assassinados numa mesma noite, com um tiro na testa.

Apenas Aureliano Amador, escondendo-se na floresta, sobreviveu ao massacre, para ser assassinado décadas depois, quando Macondo já estava se perdendo no meio do pó, na porta da casa dos Buendía. Ou seja, mesmo depois do falecimento do coronel e do esmorecimento dos ideais libertários que poderiam provocar uma nova revolução, a casa dos Buendía continuava vigiada pelas autoridades. Essa precaução era desnecessária. Ninguém mais lembrava do coronel Aureliano Buendía e de suas trinta e duas revoluções armadas contra a tirania. Seu nome seria lembrado apenas como um nome de rua, sem nenhuma referência com a pessoa em si ou com seus feitos. A população chegaria a acreditar que ele jamais tinha existido e não passava de uma invenção do governo, um pretexto para eliminar os liberais.

As batalhas entre liberais e conservadores são uma referência explícita aos turbulentos anos vividos pela população da Colômbia na transição dos anos 1940 para os 1950. E são, também, uma referência à Guerra dos los Mil Días, que se estendeu entre outubro de 1899 a novembro de 1902, sendo finalizada pela assinatura do Tratado da Neerlândia, exatamente como descrito em Cem anos. Essa guerra é considerada o maior conflito civil da Colômbia, devastando a nação e deixando um saldo de mais de mil mortos. A guerra não se restringiu à Colômbia, estendendo-se à países vizinhos, como Venezuela e Equador.

Após o término da guerra, Macondo passou por um novo processo de progresso. A escola, antigo quartel dos liberais, sendo sucessivamente bombardeada, foi recuperada. Bruno Crespi construiu uma loja de brinquedos e de instrumentos musicais e fundou um teatro, que as companhias espanholas incluíram em seus itinerários. Macondo já possuía um contato com o mundo. Mas, o progresso efetivamente só aconteceu em Macondo, quando Aureliano Triste, um dos dezessete filhos do coronel, levou os trilhos de trem até Macondo. A partir de então, o povoado se espantou com as lâmpadas elétricas, com o gramofone, com o telefone e com o cinematógrafo: “Macondo (viveu) num permanente vaivém do alvoroço ao desencanto, da dúvida à revelação, ao extremo de já ninguém poder saber, com certeza, onde estavam os limites da realidade. Era uma intrincada maçaroca de verdades e miragens” (Márquez, 1977, p. 217).

Os trilhos do trem, símbolo da modernidade e sinônimo de rapidez, colocaram Macondo na rota dos comerciantes e forasteiros. Rapidamente a cidade cresceu, casas foram construídas e ruas foram abertas. Novos hábitos e valores, somados aos novos inventos, passaram a impregnar o ar e mudaram a aparência da velha cidade. Essas mudanças, que ocorreram em Macondo, aconteceram efetivamente em muitas cidades latino-americanas, que presenciaram o surto desenvolvimentista de meados dos anos 1950. Contraditoriamente, o mesmo trem que trouxe avanços e prosperidade, também trouxe o fim da cidade. Foi nele que chegou o Mr. Herbert e logo depois a companhia bananeira do Sr. Jack Brown. Depois deles, Macondo jamais seria a mesma.

A companhia bananeira em Macondo é uma referência à instalação da United Fruit Company, companhia norte-americana, em diversos países da América Latina, para a exploração de bananas e abacaxis. Como em Macondo, em todos os países que se instalava, a companhia explorava a mão de obra local, financiava a derrubada dos governos democráticos e promovia a instalação de ditaduras repressoras, outorgando poderes a líderes locais que favorecessem seus interesses econômicos. Em 1969, a companhia foi comprada pela Zapata Corporation, empresa próxima de Georg H. W. Bush, e alterou sua razão social para Chiquita Brands. O nome alterou, mas as práticas permaneceram as mesmas. A companhia envolveu-se em vários massacres de sindicalistas e camponeses na América Latina.

A peste da companhia bananeira – a construção da memória e a distorção da história

O massacre da companhia bananeira, ilustração de Carybé, 1971.

Mr. Herbert chegou a Macondo como mais um forasteiro e resolveu investigar melhor o lugar, após ter comido um cacho de bananas e analisado meticulosamente com vários tipos de aparelhos um exemplar da fruta. A personagem incarna não apenas o capitalista neoliberal, mas sobretudo, a negação do conhecimento em benefício do pragmatismo do ter. Atraído por suas informações de negócio fácil, chegou à cidade o Sr. Jack Brown, acompanhado de seus advogados em trajes negros, mais parecidos com urubus, um prelúdio da catástrofe que se abateria sobre a cidade.

A fertilidade da terra, o clima favorável e a população gentil e trabalhadora atraíram os especuladores capitalistas, que vislumbraram a oportunidade de ganhos fáceis. Os advogados vestidos de negro já haviam aparecido antes na narrativa, ao assediarem o coronel Aureliano Buendía para formular um acordo de paz entre as tropas liberais e o governo conservador. Os advogados, defensores dos interesses da classe dominante, surgem na narrativa diretamente associados à opressão e à especulação. Não por acaso, García Márquez os denomina de “ilusionistas do direito”.

Rapidamente, numa invasão tumultuada, intempestiva e incompreensível, os americanos, com suas famílias, se instalaram em Macondo e alteraram tragicamente a vida de seus habitantes. Construíram suas casas do outro lado dos trilhos do trem e cercaram o local com uma rede metálica, não somente para proteção, mas, sobretudo, numa nítida separação com a população local, com a qual não queriam convivência, mantendo os mesmos costumes de sua terra natal. Trouxeram novos hábitos e encantaram as gerações mais jovens. Retiraram do poder os antigos fundadores da cidade e colocaram em seu lugar forasteiros que não conheciam os valores e as necessidades da população.

Instalaram o medo, a opressão e a violência. Empregaram um sem-número de pessoas, com base na exploração do trabalho. Os trabalhadores eram submetidos à insalubridade de suas casas, à farsa dos atendimentos médicos, às péssimas condições de trabalho e, até mesmo, à ausência de salário, pois o que recebiam eram vales, que só poderiam ser trocados por presunto da Virgínia, nos armazéns da companhia. Foi um período de mudanças rápidas, em que os próprios habitantes não reconheciam mais sua cidade.

Até mesmo a natureza os americanos alteraram: “modificaram o regime das chuvas, apressaram o ciclo das colheitas, e tiraram o rio de onde sempre esteve e o puseram com as suas pedras brancas e as suas correntes geladas no outro extremo da povoação” (Márquez, 1977, p. 220). Quando o livro foi publicado, em 1967, essas mudanças poderiam ser identificadas como pertencentes ao realismo mágico de García Márquez. Atualmente, sabe-se que os avanços tecnológicos e industriais, além de trazerem enormes benefícios, também possuem aspectos negativos, entre eles, alteram o ritmo da natureza. Vivemos períodos de chuva, calor e frio intensos e fora de época, fruto da poluição desmedida. Hormônios aceleram o crescimento de animais, para serem abatidos mais rapidamente. Territórios de antigos povoados são desapropriados para a construção de barragens. É o avanço do capitalismo que não respeita nem a natureza, nem a humanidade.

O já velho e observador coronel Buendía imediatamente percebeu que algo de estranho havia acontecido com a população de Macondo, o que determinaria o seu fim. Cada vez mais os habitantes assumiam uma atitude de subserviência frente aos forasteiros, perdendo toda a coragem dos fundadores da cidade.

Para os brasileiros, o interesse dos americanos por bananas possui uma conotação especial. Após uma carreira de sucesso no Brasil, em 1939, Carmen Miranda partia para a conquista dos Estados Unidos. Após um ano, a cantora e atriz, que trazia ornamentos de frutas tropicais na cabeça, notadamente bananas, era aplaudida com entusiasmo pelas plateias comuns e de famosos. Até mesmo o então presidente norte-americano, Franklin Roosevelt, não resistiu aos seus encantos de atriz.

Entre 1942 e 1953, atuou em 13 filmes de Hollywood e nos mais importantes programas de rádio, televisão, casas noturnas, cassinos e teatros norte-americanos. De todos os filmes, o de maior sucesso foi Entre a loura e a morena (The gang´s all here, 1943) dirigido por Busby Berkeley. No filme, há um musical que inicia com lindas bailarinas deitadas no que seria uma ilha com bananeiras. Carmen Miranda entra no palco sentada em frondosos cachos de banana, transportados numa carroça, sugerindo que elas acabaram de ser colhidas. Ela canta em inglês, num ritmo nada brasileiro, a sua própria história: o fascínio que a garota com frutas na cabeça exerce sobre as pessoas. As bananas são o destaque do musical.

Elas estão, não apenas no ornamento que Carmen Miranda traz na cabeça, mas também, na decoração do cenário e se transformam em instrumento musical. Num balé extremamente coordenado, que, como bem comparou Sigfried Kracauer (2009), mais parece uma demonstração matemática, sem graciosidade, numa sequência de atos repetitivos e cansativos, as bailarinas dançam segurando bananas gigantes nas mãos. Sobre essa questão, vale lembrar ainda a famosa marchinha de carnaval de Alberto Ribeiro e João de Barro, criada em 1937, até hoje de enorme sucesso:

Yes, nós temos banana
Banana pra dar e vender
Banana, menina tem vitamina
Banana engorda e faz crescer

Artistas como Carmen Miranda, Alberto Ribeiro e João de Barro foram beneficiados pela Política da Boa Vizinhança, que vigorou nas relações entre Estados Unidos e a América Latina, entre os anos 1933 e 1945. Essa política, apesar de valorizar muitos artistas, estava longe de ser um benefício para a América Latina. Enquanto os artistas faziam sucesso nos teatros, nas rádios e nas casas de espetáculo, os seus países eram invadidos com o modo de viver norte-americano, que numa grande maioria das vezes, apagou as tradições locais, substituindo-as por outros costumes, com os quais a população não tinha nenhuma história, nem identificação.

Em Macondo não foi diferente. Meme, quinta geração da família Buendía, filha de Aureliano II e Fernanda del Carpio, se integrou facilmente aos costumes norte-americanos. Aprendeu a nadar, jogar tênis, comer presunto da Virgínia com abacaxi e falar inglês. Esqueceu que era uma Buendía, que havia nascido em Macondo, enfim, perdeu a identidade.

Após a chegada dos americanos, passou a existir em Macondo distintas classes sociais. A igualdade de direitos e de condições, delineadas por José Arcádio Buendía na fundação da cidade, ficaram esquecidas no passado. Com os americanos e sua empresa capitalista, os habitantes de Macondo conheceram a favelização, a miserabilidade e as doenças crônicas, fruto das péssimas condições de higiene e saúde.

A urbanização de Macondo sob os auspícios da companhia bananeira é um progresso enganador, pois traz consigo os sinais da dependência econômica. Esse pseudoprogresso não é desconhecido de muitas cidades latino-americanas, principalmente as litorâneas. Pequenas comunidades pesqueiras e de artesanato de subsistência, que viviam com alimento e moradia suficientes, passaram por falsos processos de desenvolvimento com a chegada de grandes empresas. Elas compraram propriedades a preço baixo e instalaram grandes complexos hoteleiros e de lazer, apenas para turistas aproveitarem as belezas e riquezas naturais.

De comunidades pesqueiras autossuficientes, se transformaram em sem-terra, sem casa, sem trabalho e sem dignidade, banida dos polos turísticos e engrossando a grande massa populacional que vive abaixo da linha da miséria. Macondo simboliza todas essas cidades que se transformaram apenas em mais uma peça da engrenagem do subdesenvolvimento. É a metáfora do avanço do capitalismo sobre a América Latina.

Diante das péssimas condições de trabalho e vivência, impostos pela companhia bananeira, a greve dos trabalhadores estourou em Macondo. José Arcádio Segundo, até então capataz e defensor das práticas da companhia, uniu-se aos trabalhadores e impulsionou o movimento, com a mesma energia e garra que anos antes seu tio-avô, o coronel Aureliano Buendía, havia liderado uma guerra armada contra os conservadores. Rapidamente os norte-americanos, donos da companhia bananeira, organizaram uma contrarreação e seus procuradores, os advogados de negro, levaram o caso aos supremos tribunais.

O Sr. Jack Brown, agora Dagoberto Fonseca, apareceu de cabelo pintado, falando um fluente castelhano, afirmando ter nascido em Macondo e ser vendedor de plantas medicinais, não possuindo nenhum contato com a companhia bananeira. Os “ilusionistas do direito” mostraram o atestado de óbito do “verdadeiro” Sr. Brown, autenticado por cônsules e chanceleres. Conseguiram provar também que as reivindicações eram descabidas, porque jamais a companhia bananeira havia tido empregados, pois contratava mão de obra apenas esporadicamente. Enfim, conseguiram que os tribunais sentenciassem e proclamassem em decretos solenes a inexistência dos trabalhadores.

Para conter a multidão de trabalhadores descontentes com as determinações dos tribunais, o exército assumiu as negociações e marcou uma reunião na praça da estação de trem. Mais de três mil pessoas compareceram, trabalhadores, mulheres e crianças, entre eles, José Arcádio Segundo. Num pronunciamento rápido de oitenta palavras, os grevistas foram classificados de quadrilha de malfeitores e o exército tinha o direito de matá-los à bala. Como a multidão não saía da estação e protestava indignada com gritos e xingamentos, quatorze ninhos de metralhadoras dispararam sobre ela que tentava fugir indefesa.

Trata-se de uma releitura da atuação da United Fruit Company na Colômbia. Em 1928, exatamente como descrito em Cem anos, diante das manifestações operárias por melhores condições de trabalho, a companhia mandou as autoridades reprimirem os manifestantes a tiros. O acontecimento ficou conhecido como o Massacre das Bananeiras. Em Cem anos, os mortos foram colocados num longo trem com mais de duzentos vagões, que saiu à noite sorrateiramente de Macondo, sem nenhuma luz e escoltado por soldados, provavelmente rumo ao mar, onde jogaria seu peso morto, exatamente como fazia com as bananas refugadas. José Arcádio Segundo conseguiu escapar do massacre e do terror dos vagões.

Retornando para casa conversou com várias pessoas, todas lhe disseram que nada havia acontecido em Macondo (Márquez, 1977, p. 294): “(…) tinham lido uma comunicação nacional extraordinária, para informar que os operários tinham obedecido à ordem de evacuar a estação e se dirigiram para as suas casas em caravanas pacíficas. A comunicação informava também que os dirigentes sindicais, com um elevado espírito patriótico, tinham reduzido as suas reivindicações a dois pontos: reforma dos serviços médicos e construção de latrinas nas vivendas. (…) A versão oficial, mil vezes repetida e repisada em todo o país por quanto meio de divulgação o Governo encontrou ao seu alcance, terminou por se impor: não houve mortos, os trabalhadores satisfeitos tinham voltado para o seio das suas famílias, e a companhia bananeira suspendia as suas atividades até passar a chuva”.

Choveria em Macondo por quatro anos, onze meses e dois dias. Ao término ninguém se lembrava mais da companhia bananeira. A falsa prosperidade seria levada juntamente com as águas das chuvas. Na casa dos Buendía, a fartura e a limpeza pertenciam aos tempos de Úrsula e Santa Sofia de la Piedad. Aureliano Babilônia, sexta geração da família e que iria decifrar os pergaminhos de Melquíades, depois de cem anos de solidão, mesmo sem saber que era um Buendía, era o único que acreditava e repetia a história do tio-avô: “Macondo tinha sido um lugar próspero e bem encaminhado até que o perturbasse, corrompesse e explorasse a companhia bananeira, cujos engenheiros provocaram o dilúvio como um pretexto para fugir aos compromissos com os trabalhadores” (Márquez, 1977, p. 331).

Apenas seu melhor amigo, apropriadamente denominado de Gabriel Márquez (bisneto de Gerineldo Márquez, que havia lutado pelos liberais, ao lado do coronel Aureliano Buendía) acreditava em sua versão. Todos de Macondo repudiavam a história do massacre e dos trabalhadores mortos atirados ao mar. Repetiam o que tinham lido nos textos judiciais e aprendido na escola: a companhia bananeira jamais existira.

O massacre da companhia bananeira fora praticamente apagado da memória, proporcionando a ascensão de uma história oficial, que transformou a chacina apenas em mais uma discórdia, facilmente resolvida, entre patrões e empregados. De usurpadores, os capitalistas da companhia bananeira passaram a ser lembrados como bem feitores e incentivadores do progresso de Macondo. Com o passar dos anos, até mesmo essa versão imposta pelos governos conservadores foi substituída por uma mais eficiente para a classe dominante, a da inexistência da companhia bananeira. Apagando da história e sufocando as lembranças da empresa capitalista, apagavam-se também todas as suas arbitrariedades, toda a corrupção e todas as manifestações trabalhistas feitas contra ela. Todo o regime de violência que impôs, não somente sobre seus trabalhadores, mas sobre toda a população de Macondo.

O capitalismo destrutivo e o apocalipse de Macondo

Depois do avanço do capitalismo, representado pela companhia bananeira, Macondo se transformou numa cidade de sobreviventes do caos. A cidade ficou em ruínas, com ruas empoeiradas e solitárias, um povoado morto, deprimido pela poeira e pelo calor. A própria natureza se esqueceu da cidade, soprando um vento árido que petrificou as lagoas, sufocou as plantas e cobriu para sempre os tetos de zinco e as amendoeiras solitárias. Nem mesmo os pássaros conseguiam voar na cidade, perdendo o rumo, batiam-se contra as paredes, até que esqueceram de sobrevoar Macondo. Os habitantes eram consumidos pelo esquecimento e abatidos pelas poucas lembranças, seguiam inertes pelas ruas empoeiradas e pelas casas em ruínas. Nem mesmo o trem parava mais na estação. A poeira cobria tudo: casas, móveis e pessoas.

Na casa dos Buendía não era diferente. As paredes estavam rachadas, os móveis bambos e desbotados, as portas desniveladas. Os cupins, as traças e as formigas ruivas seguiam em seu ritmo devastador, destruindo tudo. Os dois únicos integrantes da família, José Arcádio e Aureliano Babilonia (tio e sobrinho), eram possuídos por um espírito de resignação e desgraça. Amaranta Úrsula, tataraneta dos fundadores, pequena e dinâmica como Úrsula Iguarán, recém-chegada à cidade depois de 10 anos de ausência, empreendeu uma jornada para salvar a casa e a comunidade, em vão. Ela também não sobreviveria à catástrofe que se abateu sobre a cidade.

As águas do dilúvio também levariam os últimos fragmentos de memória. Ninguém mais se lembraria dos fundadores da cidade ou quem teria plantado as amendoeiras, que, se no princípio deixaram a cidade mais fresca com suas sombras, já não passavam de galhos quebrados e folhas empoeiradas. Porque as cidades que não preservam a sua memória, nem escrevem a própria história, estão fadadas ao esquecimento e à destruição.

Com o exemplo de Macondo, Cem anos de solidão reflete sobre a trajetória de várias cidades latino-americanas, que se tornaram mais uma vítima do avanço do capitalismo. Espoliada e explorada, ela não conseguiu sobreviver à tirania do fetichismo da mercadoria. Muitas outras conseguiram, mas jamais foram as mesmas, integraram-se ao mundo competitivo e superficial da barbárie. As regras capitalistas são destrutivas, tanto das cidades, como de seus habitantes. Elas destroem as riquezas naturais, alterando seus ciclos, e as arquiteturas históricas, em benefício de uma sociedade cada vez mais perdulária. Elas impõem uma superficialidade e competitividade nas relações humanas.

Mas, Cem anos não é apenas morte e destruição. Defende, sobretudo, a tese de que as histórias de tirania dos governos fascistas, das revoluções que resistiram à opressão e à violência, das lutas dos operários por melhores condições de trabalho e de vida, da espoliação e expropriação capitalista não podem ser esquecidas, não podem ser apagadas da memória, nem podem ser transformadas em outra história.

Considerando que a literatura possui uma linguagem que articula o mítico, o histórico e o maravilhoso, toda obra literária tem sua própria maneira de produzir sentido. Ficcional por excelência, a literatura recria uma realidade portadora de uma dicção inovadora. Nesse sentido, em Cem anos de solidão, o discurso ficcional surge como lugar privilegiado da verdade sócio-histórica, pois deslegitima e desmoraliza as versões oficiais da memória e da história.

*Soleni Biscouto Fressato é doutora em ciências sociais pela Universidade Federal da Bahia (UFBA). Autora, entre outros livros, de Novelas: espelho mágico da vida (quando a realidade se confunde com o espetáculo) (Perspectiva).

Referência


Gabriel García Márquez. c. Tradução: Eliane Zagury. Rio de Janeiro, Record, 1977, 448 págs. [https://amzn.to/4d1P6Uf]

Bibliografia


BELL, Gustavo. “Discurso del Señor Vicepresidente de la República, Primer Foro Internacional sobre la obra de Gabriel García Márquez.” In: Gabo, ritmo, percusión y voces. Colombia, Fundación Festival de la Leyenda Vallenata: Ministerio de Cultura, 2001.

BENSOUSSAN, Albert. “Présentation.” In: MÁRQUEZ, Gabriel García. Cent ans de solitude. Paris: Editions du Seuil, 1995.

BORDA, Juan Gustavo Cobo. “Cien años de soledad: un cuarto de siglo.” In: Gabriel García Márquez, testimonios sobre su vida, ensayos sobre su obra. Santafé de Bogotá: Siglo del Hombre Editores, 1992.

KRACAUER, Sigfried. O ornamento da massa: ensaios. São Paulo: Cosac Naify, 2009.

LEPAGE, Caroline. TIQUE, James Cortes. Lire Cent ans de solitude. Voyage en pays macondien. Paris: CNED, 2008.

MÁRQUEZ, Gabriel García. El odor de la guayaba. Barcelona: Mandadori, 1994.

OSÓRIO, Conrado Zuluaga. “La función social en la obra de García Márquez.”In:Puerta abierta a Gabriel García Márquez. Barcelona: Casiopea, 2001.

RODRIGUES, Marly. A década de 50. Populismo e metas desenvolvimentistas no Brasil. Coleção Princípios. São Paulo: Ática, 1996.


A Terra é Redonda existe graças
aos nossos leitores e apoiadores.
Ajude-nos a manter esta ideia.
CONTRIBUA

Veja neste link todos artigos de

AUTORES

TEMAS

10 MAIS LIDOS NOS ÚLTIMOS 7 DIAS

Lista aleatória de 160 entre mais de 1.900 autores.
Valerio Arcary Matheus Silveira de Souza Leonardo Avritzer João Sette Whitaker Ferreira Sandra Bitencourt Manuel Domingos Neto Vladimir Safatle Juarez Guimarães Celso Favaretto Everaldo de Oliveira Andrade Gabriel Cohn Eugênio Trivinho Dennis Oliveira Michel Goulart da Silva Paulo Fernandes Silveira Kátia Gerab Baggio Tales Ab'Sáber Henry Burnett Sergio Amadeu da Silveira André Singer Luís Fernando Vitagliano Ricardo Musse Daniel Costa João Carlos Loebens Dênis de Moraes Tarso Genro João Lanari Bo Rodrigo de Faria Leonardo Boff Eliziário Andrade Paulo Martins José Costa Júnior Jorge Branco José Dirceu Alexandre Aragão de Albuquerque João Carlos Salles Salem Nasser Airton Paschoa Jorge Luiz Souto Maior Alexandre de Oliveira Torres Carrasco Eleonora Albano Michael Roberts José Luís Fiori Liszt Vieira Michael Löwy Atilio A. Boron Ricardo Abramovay Ronaldo Tadeu de Souza Alexandre de Lima Castro Tranjan Lucas Fiaschetti Estevez Daniel Brazil Marcus Ianoni João Paulo Ayub Fonseca Marilia Pacheco Fiorillo José Machado Moita Neto Remy José Fontana Ronald Rocha Érico Andrade Marcos Aurélio da Silva Bruno Fabricio Alcebino da Silva Luiz Renato Martins Annateresa Fabris Flávio R. Kothe José Geraldo Couto Walnice Nogueira Galvão João Adolfo Hansen Anderson Alves Esteves Fábio Konder Comparato Mariarosaria Fabris Yuri Martins-Fontes Luiz Roberto Alves Eugênio Bucci Bento Prado Jr. Elias Jabbour Luiz Carlos Bresser-Pereira Lorenzo Vitral Ronald León Núñez Celso Frederico Luiz Bernardo Pericás Eleutério F. S. Prado Claudio Katz Leonardo Sacramento José Raimundo Trindade Slavoj Žižek Francisco Fernandes Ladeira Plínio de Arruda Sampaio Jr. João Feres Júnior Henri Acselrad Alexandre de Freitas Barbosa Priscila Figueiredo Luiz Eduardo Soares Berenice Bento Jean Marc Von Der Weid Bernardo Ricupero Boaventura de Sousa Santos Anselm Jappe Lincoln Secco Fernando Nogueira da Costa André Márcio Neves Soares Igor Felippe Santos Renato Dagnino Gerson Almeida Leda Maria Paulani Marcelo Guimarães Lima Chico Whitaker Marilena Chauí Daniel Afonso da Silva Heraldo Campos Marcelo Módolo Carlos Tautz Samuel Kilsztajn Luiz Werneck Vianna Antonio Martins Paulo Sérgio Pinheiro Rafael R. Ioris Denilson Cordeiro Julian Rodrigues Ladislau Dowbor Manchetômetro Fernão Pessoa Ramos Caio Bugiato Eduardo Borges Osvaldo Coggiola Vanderlei Tenório Francisco de Oliveira Barros Júnior Antônio Sales Rios Neto Maria Rita Kehl Armando Boito Mário Maestri Francisco Pereira de Farias Rubens Pinto Lyra Gilberto Lopes Chico Alencar Andrew Korybko Tadeu Valadares Ricardo Fabbrini Milton Pinheiro Flávio Aguiar Otaviano Helene Thomas Piketty Carla Teixeira Antonino Infranca Marjorie C. Marona Afrânio Catani Marcos Silva Gilberto Maringoni Paulo Nogueira Batista Jr Luciano Nascimento Jean Pierre Chauvin Luiz Marques Bruno Machado Benicio Viero Schmidt Vinício Carrilho Martinez Ricardo Antunes Andrés del Río Alysson Leandro Mascaro Luis Felipe Miguel Ari Marcelo Solon José Micaelson Lacerda Morais Paulo Capel Narvai

NOVAS PUBLICAÇÕES